A Professora, cantora e compositora Lívia Barros mostra que samba revolução é para mulheres sim!
"A vida é a arte do encontro" disse Vinícius de Moraes no Samba da Benção.
E foi assim com Lívia desde a infância: na praia por coincidência, depois na juventude por amigos em comuns, ou quando ela, já estudante de Letras na USP se encontrava comigo nas ruas parávamos para breves mas produtivas conversas.
A Professora, Cantora e Compositora traz um misto de doçura e firmeza na fala que sempre admirei : não sabia na nossa juventude de sua vocação para a música. Conheci seu trabalho musical no Coletivo Carta na Manga, grupo que teve há mais de dez anos e que trazia referências culturais do Norte de Minas, Nordeste e Vale do Paraíba. Daí em diante passei a me encontrar com a arte da doce menina, com quem mantive contato pelas redes sociais.
No fim do ano passado me deparei com a mulher, compositora em forma de música: no fim do ano veio até mim com um samba para me encantar, um samba para me enfeitar, um samba para que eu pudesse pisar no meu lugar.
O samba revolução feito por ela me tocou o coração: "Que venha em mim" era o primeiro EP lançado pelo Grupo Dona da Rua, formado por Lívia, Helô Ferreira, Verônica Borges e Juliana Cardoso. O samba, inspirado num ato de covardia sofrido por Verônica que teve sua baqueta bruscamente tomada por um homem em uma roda de samba e não teve reação, tem como intuito firmar o princípio da sororidade: o estender a mão à outra mulher.
E há duas semanas o grupo lançou outro samba revolução que recomendo que escutem : " Filha da Luta" , composição de Guilherme Bandeira traz na fala a voz de uma mulher que mostra a que veio : ser resistência, porta-voz da justiça e da paz.
E é ela quem apresento a vocês hoje no Falando em Sol: Lívia Barros.
FS- Que venha em mim é um samba revolução. Qual o lugar da mulher na sociedade atual?
As mulheres têm uma longa trajetória de submissão e violência relativa a toda estrutura do patriarcado, sobretudo as mulheres negras e pobres no Brasil. Antes de tudo, precisamos nos perguntar de qual mulher estamos falando?
A que usufrui das conquistas dos feminismos ao longo do tempo ou das que ainda não tem acesso a esses direitos?
Mulheres ocupam diferentes posições hoje, mas é preciso lutar pra que todas possam usufruir de direitos básicos.
FS Sororidade é uma realidade no meio musical?
A noção de sororidade está atrelada a uma das conquistas do feminismo, é importante falar sobre ela, buscá-la, entendê-la e praticá-la, no entanto, não é um processo fácil. Há séculos, aprendemos a competir com outras mulheres, é preciso continuar buscando. Não digo apenas no meio musical, nas profissões de um modo geral. É preciso poder ter mulheres pra admirar e só a representatividade pode nos possibilitar um novo modo lidar.
FS Como nasceu o Dona da Rua?
O Dona da rua nasceu da Roda de Samba de Mulheres do Casarão da Mariquinha com o apoio do Rabicho. Mais exatamente, aconteceu depois da Roda de Samba das Mulheres pelos 21 dias de ativismo que aconteceu na quadra da escola de samba da Vila Industrial em 2018. Era um ano intenso, politicamente falando. Foi um evento muito poderoso que envolveu muitas mulheres de muitas áreas. Nessa roda, conheci a Helô Ferreira e Verônica Borges, a Juliana Cardoso já era minha amigona, fomos nos vendo cada vez mais e nunca mais nos desgrudamos. Eu tive a ideia do nome e nem me lembro qual foi o contexto, só sei que esse grupo se tornou minha família.
FS O lançamento de "Que Venha em mim" foi no dia da Consciência Negra. Enquanto vocês homenagearam compositores e cantores negros a Fundação Zumbi dos Palmares excluía nomes como Elza Soares, Milton Nascimento, Gilberto Gil. Estamos retrocedendo?
Como você enxerga essas atitudes negacionistas?
A história do Brasil precisa ser recontada, somos a maior nação negra do mundo, temos marcas profundas da diáspora centro- africana em nossos corpos e seres e ainda não conhecemos nossa história. As elites brasileiras sempre foram escravistas, perversas e nunca quiseram abrir mão de seus privilégios. Houve um momento, porém, nos governos de bem-estar-social do PT de políticas mais afinadas com as necessidades das classes mais pobres trabalhadoras e acredito ter sido esse um dos motivos da ascensão mais violenta dos negacionistas, fascistas e violentos homens brancos que não podiam aceitar uma escalada social dos pobres, ainda que fosse mínima. No entanto, não acredito que tenha sido esse o único motivo. O capitalismo neoliberal produz sociedades doentes, pobres, vulneráveis e líderes de extrema direita no mundo inteiro se aproveitam dessa miséria. A gente pode observar muito mais igrejas evangélicas no Brasil do que cinemas ou teatros. Esses líderes neopentecostais estão se aproveitando da vulnerabilidade das pessoas. Em outros países do mundo, a extrema direita também cresce, se aproveitando das falhas desse sistema. O discurso de ódio que está à frente hoje na Fundação Palmares é uma estratégia evidente para corromper as conquistas dos movimentos negros brasileiros e o acesso do povo brasileiro a sua própria história, sua arte, seus ícones. Isso é triste, mas não vai durar pra sempre. Amanhã vai ser outro dia, quero acreditar.
FS Em Mogi das Cruzes ano passado o Lucas Garcia, professor voluntário de zumba levou um tiro durante a aula. A Frente Popular pela Cultura fez um ato pedindo por justiça. Qual a importância dos artistas no Brasil atual no posicionamento contra a intolerância gratuita?
Essa semana eu ouvia o professor Vladimir Safatle numa rádio e ele dizia que o discurso de alguns artistas sobre a possibilidade de se reinventar e se recriar no período de confinamento chega ser obsceno. Porque num país em que morrem 4mil pessoas por dia, muitas passam fome e o ódio a negros, mulheres e população LGBTQI+ só aumenta, chega ser violento não fazer da arte, nossa indignação, nossa não aceitação da barbárie.
Digo isto porque pra mim a arte é um instrumento de defesa, a arte é antes de tudo, política. Eu me entendo artista principalmente no contexto de luta, de militância e enfrentamento. É certo que não sei exatamente o que fazer, sei que não basta só fazer canção de protesto, é preciso se organizar e ocupar as ruas e, nesse momento, estamos com medo de morrer. A questão é que a discussão da "arte pela arte" já é antiga e, pra mim, nunca fez sentido. Pra mim, a arte é política e transformadora porque nos faz viver e querer viver melhor, nos faz refletir, nos humaniza. Tem um poema do Solano Trindade que se chama "Esperemos" e diz assim:
Eu ia fazer um poema para você
mas me falaram das crueldades
nas colônias inglesas
e o poema não saiu
ia falar do seu corpo
de suas mãos
amada
quando soube que a polícia espancou um companheiro
e o poema não saiu
ia falar em canções
no belo da natureza
nos jardins
nas flores
quando falaram-me em guerra
e o poema não saiu
perdão amada
por não ter construído o seu poema
amanhã esse poema sairá
esperemos.
Enquanto tivermos que lutar, nossa arte será de luta, terá cara e focinho de luta. Essa não é uma regra a ser seguida, não cabe a mim impor essa verdade, mas foi como me encontrei na música.
FS O meio do samba é machista?
Sim, homens dominavam toda a estrutura musical de uma roda de samba e isso não é mais assim, a mulheres do samba fizeram um movimento incrível dentro desse espaço e ocuparam todos os lugares. No entanto, é preciso lembrar que o samba é uma manifestação que sempre sofreu represália, principalmente por ser preto. A dinâmica do samba, muitas vezes, se deu nesse contexto de proteção de um lugar ou um papel de importância que esses homens pretos conquistaram, resistindo. É preciso respeitar os pretos e pretas no samba antes de tudo: saber que não vim do samba, mas estou caminhando para encontrá-lo, como lembra minha amiga Helô.
FS Como é o processo de composição pra você? Quem e o que te inspira?
Eu escrevo sobre o que vivo, sobre as experiências da vida, na maioria das vezes pensando no contexto social. Demorei a perceber que só tinha homens compositores como ídolos como Caetano, Gil, Chicos, Paulo Cesar Pinheiro, Milton. Eles são grandiosos!!! Ultimamente, tenho buscado reconhecer mulheres compositoras como Jovelina Pérola Negra, Ivone Lara, Lecy Brandão que falam da negritude e são a personificação da resistência da mulher negra na música.
FS A Lei Emergencial Aldir Blanc foi de extrema importância para os artistas nesse ano.Qual a importância de estender por mais um tempo os recursos desta lei?
A maioria dos artistas não podem se reencontrar ou se reinventar na Pandemia. Artistas são historicamente profissionais desvalorizados e mal pagos, são tratados como se sua função fosse entreter apenas. Então, para que sejamos respeitados, precisamos poder viver da nossa arte com dignidade. São necessárias políticas públicas que atendam esse vazio no mercado. Medidas de apoio e políticas públicas eficazes devem atender os trabalhadores de modo geral, mas mediante o plano de extermínio do atual governo, não vejo muitas saídas. Sairemos dessa Pandemia ainda mais desmantelados. Nos resta alguma fé no sistema democrático que, através do congresso, possibilitou auxílio aos artistas. É preciso defender a democracia, ainda que esteja em frangalhos.
FS Quais os próximos projetos pro Dona da Rua?
Sobreviver a Pandemia e tomar vacina! Gravar um disco produzido por nós! Sobreviver da nossa arte, levar nossa mensagem para todos os cantos, compor, multiplicar vozes de mulheres no samba, ocupar!
Comentários
Postar um comentário