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Quinta da Saudade: Lu Blues, a Janis Joplin brasileira


Lu Blues, a Janis Joplin brasileira 
Foto: Arquivo /Clara Estrela

No dia 31 de novembro do ano passado, num domingo nublado e chuvoso refletia no sofá de minha casa sobre a prova que acabara de fazer. Estava cansada e aborrecida, de leis pouco sabia, muito embora os textos de Clarice Lispector que estavam no exame me davam um certo conforto . E foi nela que pensei, em especial em seu último bilhete, escrito à mão no hospital dizendo que sua alma tinha o peso da luz,  o peso da música e o peso da palavra . "Que força tem a arte para tornar uma pessoa imortal...", me questionei.
 Foi quando meu celular vibrou e recebi vídeos das apresentações da segunda edição do "Blues Dellas", evento que tinha acontecido no Clube do Choro de Brasília na noite anterior e sido noticiado aqui no Falando em Sol naquela semana . Me apaixonei por cada uma das cantoras e pela banda formada por homens que se abriram para compreender a sensibilidade de cada uma delas. 
Mas uma em especial me chamou muito a atenção e levou embora toda minha tristeza. Tinha garra na voz, era uma explosão musical e tinha muito de uma artista que nós admiradoras do bom e velho rock'n'roll temos como referência de mulher na música: Janis Joplin.
Decidi, após relato emocionado de um dos músicos que a acompanhou naquela noite que iria atrás da história dela, seria minha entrevistada. Porém infelizmente um mês após a apresentação Lu Blues nos deixou em decorrência de uma meningite, que encontrou lugar no corpo de uma  mulher de gênio forte e que não gostava de ir ao médico um quadro de anemia já avançado.
" Esse show foi a despedida dela. Tenho certeza que ela sabia que  não estava bem mas deixou o último suspiro dela no palco. Ela estava feliz como eu nunca tinha visto. Há muitos anos não via minha mãe tão feliz", se lembra Clara Estrela, filha primogênita da artista.
Nascida em Goiânia, Lucia Helena Marinho se mudou com a mãe para Brasília onde viveu intensamente os anos 70. Tinha como referências os grandes nomes do rock e do blues, e se formou musicalmente de palco em palco. Ganhava a vida cantando um repertório diferente do que estava em seu destino: os bares pediam  que se tocasse MPB e músicas variadas, não somente rock e blues. Levava consigo além dos músicos e instrumentos os três filhos: Clara Estrela, Cristal e Pedro que cresceram nos bastidores vendo a mãe brilhar nos palcos.
" Uma coisa que não sai na minha cabeça era o show. Ela tocava praticamente todos os fins de semana. Minha mãe era artista. Passava o tempo inteiro praticando a arte dela. Ouvia o repertório dos shows em casa. Ela sempre gostou de blues, mas blues não vendia no interior.", recorda Clara de um período em que viveram em cidades do interior.
E por incrível que pareça a cantora que tinha na voz a potência e a rouquidão característica de Joplin não a ouvia muito. Preferia Eric Clapton ou John Lennon e nos últimos tempos estudava com a filha as novidades do blues feito no Brasil e estava se encantando por "Flutua" de Johnny Hooker. Era engajada e gostava da proposta interessante e subversiva do cantor e compositor pernambucano.
Mas além da voz, Lu tinha muito em comum com Janis Joplin: era adepta do estilo de vida hippie e não abria mão de sua essência em nome de dinheiro ou estrelato. Muito bela recebeu propostas milionárias - chegou inclusive a participar de novelas - mas não aceitava nada que não tivesse como prioridade a arte.
"  Era uma pessoa tão simples que não fazia questão de nada material. Ela tinha um desapego completo de luxo ou riqueza. Eu ficava incomodada pois equipava a casa dela e quando voltava ela tinha dado tudo. Se tivesse um colchão para ela dormir, estava tudo certo. Era absolutamente simples: tinha poucas roupas e era muito caridosa. Minha mãe se preciso dava a roupa do corpo", se emociona.
Segundo a filha Lu era uma mulher com muitas dificuldades emocionais que lhe causaram um vitiligo e depois um quadro de alopecia. O palco era sua forma de expressar tudo o que guardava para si.
" Ela realmente só estava bem quando estava no palco vestida de Lu Blues. Era o momento em que estava realmente plena. Ela tinha muita coisa presa dentro dela e era por isso que cantava daquele jeito, com aquela energia toda. Botava todos os demônios para fora. Ela teve uma vida bastante sofrida. Cheguei a levá-la no hospital mas não gostava de ir ao médico. Para levá-la à uma consulta era um desespero", lamenta.
Por outro lado, "Lucilena" - o meteoro, como era chamada pelos familiares- era uma mãe e tanto. Cuidou dos filhos, dos netos e nos últimos tempos se dividia entre a capital do país e Belo Horizonte onde apoiava emocionalmente a filha  do meio que precisava dela após enfrentar um problema de saúde.  Poucos sabiam mas a artista era técnica de enfermagem, teve como experiência trabalhar em berçários. Era entrega e cuidados para quem amava. Mas sentia muitas dores e já estava bem debilitada devido a uma hérnia de disco.
"No de seu aniversário  minha mãe me ligou dizendo não estar passando bem. Minha cunhada a levou para o hospital. Um dia depois estava variando, no outro não me reconhecia e no seguinte já estava em coma".
E Lu Blues, essa força sonora que conheci nos deixou no dia 11 de dezembro de 2021 . Teve em sua vida um grande amor: o artista plástico Paulo Fatal, pai de seus três filhos que redigiu uma carta para o Falando em Sol.





 Fotos do Mural de Lu Blues : em uma nota publicada no jornal e com a mãe 
Arquivo Pessoal / Clara Estrela 


O mural da cantora com fotos e flyers de suas apresentações sob as bênçãos de Jimi Hendrix


Lu e banda em uma de suas últimas apresentações



Lu, em novembro na segunda edição do "Blues Dellas" acompanhada por Thaise Mandalla, Marcia Campus, Nina Molina , Mel di Souza e Mariana Coelho



Acompanhada do ex-marido e pai de seus três filhos Paulo Fatal, responsável pela carta a seguir.

"Minha filha me pede, inadvertidamente, que faça um texto sobre a mãe. Não sobre a mulher Lúcia, mas sobre a a Lu Blues, apelido que surgiu de uma brincadeira que fizemos, já vivendo juntos, ao assinar uma carta para um amigo. Conheci essa criatura vulcânica no Beirute, lendário bar de Brasília, no meio de uma malucada belíssima, que toda noite tocava e cantava na calçada. Preocupado com o adiantado estado alcoólico da moça, me ofereci para levá-la para casa. Para meu espanto, o apartamento minúsculo abrigava uma constelação de pessoas, uma multidão de meninos e meninas. Deixei-a numa vaga espremida na sala daquela lata de sardinhas e vazei. Foi o começo de uma relação que durou onze anos e me trouxe três filhos, que mudaram minha vida e justificaram meu universo. Ouvimos centenas de rocks e blues juntos, compartilhávamos a mesma afeição pelo universo do hippismo. Pode parecer hoje uma coisa antiga. Mas éramos, e ainda somos, eu e ela, de uma geração que acreditava em fazer do mundo um lugar mais cheio de luz e música, e menos de ganância e transitoriedade.

Nunca deixei de nutrir profunda admiração pelo talento musical da Lu. Era uma artista completa, na maior acepção da palavra artista: alguém fadado a não ter outra forma de expressão no mundo a não ser a arte. Era uma criatura de outro planeta caída aqui na Terra. Não se enquadrava em qualquer ordem, avessa – com alguma razão – às armações e intrigas espúrias que a poderiam ter alçado ao estrelato. Não lhe faltavam nenhum dos atributos para isso. Tinha, aliada a uma sensibilidade musical extrema, a voz mais potente, clara e segura que já ouvi. Independente dos conflitos que viemos a ter, nunca deixei de ter profunda admiração por esse talento extraordinário. Não foi feita, porém, para o mainstream, para o show business. Era demasiado rebelde para caber em mundo tão estreito. Perseguia uma pureza que pode até parecer ingenuidade, não fosse isso um desprendimento que dignifica a arte voltada para outra ordem, outro mundo, outra dimensão, embora tenha sacrificado seu ganho financeiro. Acho que ela nunca se importou de verdade com isso. E certamente terá conquistado seu lugar em uma dimensão onde a beleza não é comércio, mas a expressão da verdade. Onde ela estiver, o melhor do blues estará tocando para as almas livres."


Minha quinta da saudade hoje vai dividir com vocês o vídeo feito em 30 de outubro de 2021 pelo leitor Mario Guedes na segunda edição do "Blues Dellas" que aconteceu na área externa no Clube do Choro de Brasília.

Apresento para vocês a Janis Joplin brasileira, que se fez eterna em sua arte e deixou a mensagem de que o mundo pode ser melhor com paz, amor e muita música.




 

Comentários

  1. Convivi pouco tempo com minha sogra, mas foi o suficiente pra saber que era realmente diferenciada! A apresentação dela no Blues Dellas no Clube do Choro foi excelente!

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