Cunhã é mulher em tupi-guarani. Língua dos povos originários que já habitavam a região conhecida como M'Boyji quando o bandeirante Gaspar Vaz Guedes chegou em terras mogianas e por lá se estabeleceu.
Daí por diante a miscigenação aconteceu e outros povos chegaram dando origem à cidade que hoje é reconhecida por suas cruzes, pela história e pelas artes. E a cantora e compositora Sandra Vianna é uma das artistas que representa com garra a musica autoral de Mogi das Cruzes . De referências diversas - dos clássicos do rock à MPB atual- iniciou carreira com a dança na antiga casa de shows Kanekão.
Sua formação aconteceu nos bares mogianos e teve como mestres mestres músicos como Ulisses Garcia, Mancha, Milton Blois e Rui Ponciano, este último compositor querido por todos da cidade e conhecido por sua generosidade. O mote de sua música é lutar e representar a natureza e os povos originários, fundamentais para nossa existência na Terra. Sua arma é feita de pinho e cordas, o violão de onde saem canções como Iru.
Esse ano a artista e produtora cultural que por anos comandou a Casa Canto de Cabocla completa 25 anos de carreira e prepara um projeto que inclui um show e um CD em produção pelo EMAM (Estúdio Municipal de Áudio e Música). O título do álbum não poderia ser diferente: Cunhã.
Hoje, dia em que completa 50 anos é a entrevistada do Falando em Sol.
F.S -Sandra como surgiu seu interesse pela música?
Quando adolescente eu nunca perdia uma oportunidade de sair para dançar, aliás esse foi meu primeiro envolvimento com a música- a dança. Não perdia um dia de lambada no Kanekão, nessa época acabei me apresentando com o Beto Barbosa em São Paulo, com o grupo que a gente tinha. Quando tinha uns 17/ 18 anos saí de casa e com este advento a verba reduziu para continuar frequentando alguns lugares, acabei indo no parar lá em cima no amontoado de bares onde conheci os músicos Milton Blois, Ulisses Garcia, Paulo Henrique, Mancha e os músicos que tocavam na época: comecei a esboçar os primeiros passos no microfone . Até que fui convidada para me apresentar num show do Rui Ponciano que estava preparando um show para se apresentar no Theatro Vasques -nem o conhecia pessoalmente- só a a obra dele. Levou cerca de 20 artistas para o teatro da cidade. Depois cantei como back vocal do Serginho Machado
F.S- Quais suas referências?
Acho que tudo que a gente ouve às vezes se torna referência. Quando menina meu pai ouvia muito Clara Nunes e tenho um encanto por essa sonoridade de terreno desde pequena e atribuo esse contato à minha primeira infância. Meus pais eram da Jovem Guarda, mas cresci com um casal de primos (dez anos de diferença) e eles adolescentes ouviam desde MPB ( Amelinha, Baby, Novos Baianos, Tropicália) a clássicos do rock como Janis Joplin, Black Sabbath, Led Zeppelin, referências que me formaram durante o período em que eu não tinha nem me descoberto como artista. E atualmente - a música sempre me foi salvadora- tive contato com a música de Marisa Monte, Zélia Duncan, Cassia Eller, Vanessa da Matta, Lenine, Chico César, Anelis Assumpção (já era fã do pai), Tetê Espíndola, Alzira Espíndola, Almir Sater então é uma miscelânea. Gosto das músicas regionais, movimentos populares, congadas, marujadas eu acho que minhas referências são misturas do que vivi e que vivo.
F.S- Qual a importância do Baratotal para os músicos da cidade?
O Baratotal sempre foi e será visto por mim (porque ainda frequento) como um local de resistência desde 1996 para cá. Parabenizo a gestão de Celso Andrade por ser um sobrevivente nesse sistema que é contra a sensibilidade. Uma casa que acolhia saraus, performances teatrais, música autoral hoje funciona como pop comum, mas entendo como forma de sobreviver e ainda assim é uma das casas que mais oferece trabalho para a classe musical mogiana. Tem música ao vivo música autoral de quarta a domingo até hoje e em cada espetáculo no mínimo dois artistas na casa e está sempre cheia.
F.S- Canto de Cabocla como surgiu? Quais histórias te marcaram neste projeto?
O Canto de Cabocla surgiu inicialmente como uma produtora cultural. Fiquei dez anos fora da cidade, retornei em 2011. Logo que voltei vi um edital da Secretaria de Cultura "Denerjanio Tavares de Lyra" e pude realizar um projeto chamado "Mercasom". O intuito era levar música ao vivo para dentro do mercado municipal, fora do horário de bar e teatro, causar uma interação do público com o artista mogiano. A partir daí passei a realizar eventos de fomento à música autoral como fazia antes de sair - em 2001 realizamos o "Música para um mundo Melhor" onde uníamos cidadania e valorização dos artistas locais. No palco a gente apresentava um artista veterano da cidade e um iniciante e a bilheteria era totalmente direcionada para uma instituição. Os projetos foram realizados em várias casas da cidade e em 2017 criei coragem e aluguei um espaço para realizar esses eventos para fomento da cultura e aí o Canto de Cabocla passou a ser um espaço que resistiu até o meio da pandemia em setembro de 2021 e quando entreguei o espaço. O Paulo Betzler entrou em contato com os proprietários e deu continuidade ao projeto que hoje é a Casa do Jequitibá. O mais emocionante disso tudo eram os espetáculos: saraus, espetáculos de dança, capoeira, muito axé. O espaço era ocupado por dezenas de manifestações artísticas. O Gustavo Lima trouxe artistas da Colômbia; Valéria Custódio artistas do Rio de Janeiro, eu trouxe parceiros de São Paulo, tenho muita saudade desta época.
F.S- Você tem um trabalho muito ligado à ancestralidade indígena. Como você vê as atitudes do atual governo para com os povos originários?
É muito triste ver a postura do governo sobre os povos originários, uma relação totalmente arbitrária, um estrondoso retrocesso. A humanidade cavando seu próprio fim com esse afastamento da natureza. Enquanto não entendermos que somos um, que temos que amar a Terra como nós mesmo iremos cavando nosso fim. Sem água não tem floresta. Sem floresta não tem água e sem ambos não tem vida. O ativismo, a identificação com os irmãos vem daí, desde pequena tenho esse respeito com o meio ambiente, com as plantas, com os bichos. E é nessa militância que eu encontro o meu caminho. É triste ver como são tratados os que realmente cuidam da manutenção da natureza.
F.S- A música "Iru" traz um protesto com uma mensagem de esperança. Qual o papel do artista na sociedade atual ?
Iru compus quando tive acesso com alguns indígenas aldeados por intermédio de um curso livre de tupi-guarani que um professor antropólogo abriu em 2000 na Universidade Brás Cubas, tínhamos vivência com esse grupo de estudos. Quando podia descia com o grupo de estudos até a aldeia - e foi aí que a gente foi conhecendo o dialeto e Iru que escrevemos com o acento til no u mas o computador não permite significa companheiro, estar disposto a fazer o possível de uma condição de vida para todos nós . A música fala desta condição- já naquela época de ver o pouco caso com a natureza e só existe uma forma de mudar isso que é o apelo. Darmos as mãos e ter boa vontade. Não tem outra forma. Essa é uma das grandes missões que temos como artistas, registrar oque passamos até para que as gerações futuras entendam. É a mesma função do jornalista, mostrar, denunciar, acalentar, quiçá apontar novos caminhos, novos horizontes. A arte cura, a arte salva. Ela nos favorece condições de autoconhecimento, da sociedade. Eu não sobreviveria sem arte: sem cinema, literatura, sem dança, sem um quadro na parede.
F.S- Você já enfrentou alguma dificuldade na música por ser mulher?
Enfrentei e enfrento até hoje. É uma coisa que precisamos brigar muito pra mudar, nós mulheres sempre enfrentamos. Em todos os setores só por sermos mulheres, seja por termos escolhido a maternidade ou não. Desde assédio de clientes até misoginia de maestro, fui excluída de um coral por estar grávida e não ter acompanhante. Passei por uma situação constrangedora em uma reunião do EMAM (Estúdio Municipal de Áudio e Música) durante a pandemia porque o estúdio estava no processo de licitação e um dos técnicos seria demitido e eram dezenas de trabalhos parados . A deficiência de um técnico prejudicaria a todos. Fui 'agredida' por um dos músicos na reunião que insinuou que eu tinha um caso com um técnico e um rapper chamado Rodrigo Góes entrou em meu favor me defendendo e é importante que tenha quem nos represente. A gente passa por situações como esta e sempre vai passar . A luta é longa. Sigamos!
F.S- Qual a importância de casas de cultura e de leis de incentivo para vocês musicistas?
As casas de cultura são de extrema importância para o setor . Geralmente são locais geridos por artistas que proporcionam vivências infinitas- aprendizado, partilha, inspiração, realização individual e coletiva, acolhimento, intercâmbio cultural, disseminação, registro histórico cultural e formação de público. Se envolve políticas públicas promove um giro econômico considerável para a cidade. Já é comprovado pela Fundação Getúlio Vargas isso. A cada um real investido em arte e cultura o retorno é de quatro a sete reais e isso movimenta a economia local. Gera renda, gera emprego. É muito importante que isso seja fomentado.
F.S - Qual o balanço que você faz destes 25 anos de carreira? Vem show especial aí?
Eu fui de tudo um pouco, uma vida dedicada à sobrevivência, fazendo meus corres. Violão em punho, lancei meu CD autoral em 2004, não tinha o conhecimento que tenho hoje. Eu estava sempre na rua com minha espada de pinho e corda (rs), o meu violão pra trazer a grana pra casa, pagar o aluguel, comprar o leite das crianças, essa coisa toda. Depois o fomento de um espaço e agora com a pandemia voltei a me dedicar mais a minha música, tive aprovação do meu projeto. Está chegando um show novo, disco novo com um compilado de músicas destes 25 anos de carreira tem parcerias, autorais, interpretações, saindo pelo EMAM e a previsão de lançamento é dezembro. Foi batizado de Cunhã, que é mulher em tupi-guarani.
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