Pular para o conteúdo principal

Quinta da Saudade: " mas é preciso ter força, é preciso ter raça..."

 


Para todas as "Marias"...
Foto: Tatiana Valente



Era uma vez uma menina que tinha Ana no nome, o mesmo da avó de Jesus. Numa coincidência tinha a avó paterna chamada Maria. A mãe de seu pai trazia ainda Aparecida, nome da padroeira do país onde vivia e que há alguns anos foi alvo de chutes exibidos em rede nacional. Um ato extremo de intolerância religiosa e de atitude racista - a padroeira é negra.

Ana amava incondicionalmente a avó materna que a enchia de carinhos e a protegia, tal qual uma santa. Não tinha contato com a avó paterna, já falecida e em seu imaginário criou uma heroína pois só sabia dela as histórias que os outros contavam. Sabia que era uma mulher muito alegre, que adorava bailes e cantar: Ana começava a entender a quem tinha saído. 

O apelido da avó  era Maricota . Tinha o magistério como profissão, e ali seu sorriso aberto e sua alegria muitas vezes davam lugar a uma mulher exigente: impunha regras pra que seus alunos pudessem aprender a ler e escrever e até mesmo a bordar . As crianças que viviam uma vida humilde trabalhando na roça e chegavam sujas nas aulas recebiam dela um banho de rio, no fundo da escola da fazenda. Assim como dava roupas, cortava unhas e fazia muitas vezes o papel da mãe que não conseguia ser. Seu ventre não segurava os bebês e a única menina de nome Rosa morreu logo que veio ao mundo. E rosas não eram o forte dela. Contavam que algo misterioso acontecia quando ela olhava para qualquer flor e admirava- mesmo com toda bondade que trazia em sua alma a flor murchava como num toque de magia.

Até que conseguiu realizar o sonho de ter o próprio filho. Mas se suspeita que já tinha no estômago um tumor que tomou conta de seu corpo. O tão sonhado rebento era tirado de perto dela, pois viva urrando de dores que a morfina  não dava conta de aliviar. Ela lutou bravamente até o fim. Com força, com garra, como uma Maria.

 A neta a  imaginava como uma uma bela mulher: uma Vivien Leigh ou Ava Gardner, coisa de menina que amava filmes e novelas. Via o pai derramar lágrimas discretas nos programas em que Rolando Boldrin cantava a música que diziam pra ele que Maricota gostava de ouvir. 

Um dia ao visitar a casa da fazenda onde a avó paterna viveu até a morte pediu para que lhe mostrassem uma foto dela. A menina se espantou. Fisicamente a avó estava longe de uma mulher bonita. Morena, mas de dentes proeminentes -  sorrindo na fotografia.

Na adolescência sua heroína foi espelho para a primeira profissão que escolheu: sem os mestres e sem educação o país não tem progresso. E não desistiu, mesmo quando alguns parentes e amigos diziam:

" Uma menina tão instruída vai ser professora?, riam da sonhadora.

Anos mais tarde numa visita à terra dos pais no supermercado viu um senhor olhando insistentemente para ela. Como de praxe sorriu de volta e percebeu que na verdade ele se dirigia ao pai dela. Ao ser apresentado para Ana disse : "por isso estava te olhando. Você tem o jeito e o sorriso da Maricota", sua antiga professora.

Naquele momento ela não gostou. Tinha feito um tratamento odontológico para arrumar os dentes e ter o sorriso perfeito. Aliás queria ser perfeita. E assim tentou a vida toda, até quando os filhos nasceram.

Mas entendeu com os anos que não existe perfeição. As pessoas são como são. E a real beleza vai muito além de corpos esculpidos e rostos delicados. Hoje Ana se orgulha de ter o sorriso de Maricota.

Era uma Maria que tinha força, tinha raça e sonhos. Porque pra ser mulher no Brasil tem de ser Valente. E Ana é, e ainda possui a "estranha mania de ter fé na vida".

Meu #tbt vai compartilhar com vocês essa música que não lembro exatamente o ano em que ouvi mas que meu amado Bituca fez com o parceiro Fernando Brant e que representa todas as mulheres do nosso país. "Maria Maria" foi lançada no álbum Clube da Esquina 2 em 1978.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Djavan e Eles

Pétala - dia de celebrar o cantor e compositor muso deste blog e de muitos outros poetas e escritores Foto: Tati Valente Dia de Djavanear o que há de bom. Os leitores do Falando em Sol já estão cansados de saber o apreço que tenho pela obra do alagoano Djavan Caetano Vianna, e que todo ano, esta data aqui é celebrada em forma de palavras. O que posso fazer, se Djavan "invade e fim"? Para comemorar seu 76º aniversário, selecionei cinco momentos em que ele dividiu cena com outros nomes da música popular brasileira. O resultado: um oceano de beleza. Tudo começou aqui. Este foi o meu primeiro contato com Djavan e tenho a certeza que de toda uma geração que nasceu nos anos 1980. Ele é Superfantástico! Edgard Poças...obrigada por isso... Azul é linda, amo ouvir e cantar até cansar...  Com Gal e Djavan então...o céu não perde o azul nunca... Esse vídeo foi em um Som Brasil, no ano de 1994. Desculpem, posso até parecer monotemática, mas Amor de Índio é linda. Mais linda ainda com est...

Bituca é Nosso!

Cara Academia do Grammy. Fica aqui nossa indignação pela forma como nosso Milton Nascimento foi recebido no evento de ontem. Sem mais, Tatiana Valente, editora responsável pelo Falando Em Sol.  

Centenário Inezita Barroso

  Centenário - pesquisadora de nossa cultura popular, Inezita reunia gerações em seu programa exibido todos os domingos pela TV Cultura Foto: Reprodução Itaú Cultural Ontem, dia 4 de março, foi celebrado o centenário de uma mulher, que enquanto esteve aqui, neste plano, viveu por e para a música brasileira: Inezita Barroso. Conhecida como  a "D ama da Música Caipira", por trinta anos  abriu as portas de seu programa Viola, Minha Viola, exibido pela TV Cultura, para receber artistas da velha e nova geração.  Nascida Ignez Madalena Aranha de Lima no ano de 1925 na cidade de São Paulo adotou o sobrenome Barroso do marido. Foi atriz, bibliotecária, cantora, folclorista, apresentadora de rádio e TV.  Segundo a neta, Paula Maia publicou em seu Instagram, foi uma das primeiras mulheres a tirar carteira de habilitação e viajou por todo país para registrar músicas do folclore brasileiro.  Recebeu da Universidade de Lisboa o título de honoris causa em folclore e art...