"Toma filha, bebe esse chazinho. Você vai melhorar dessa intoxicação, ele cura envenenamento", disse meu tio segurando um copo cheio de chá de erva mamangava, amargo feito um fel.
Eu tinha me empolgado com um pirão, mas o peixe estava contaminado. Eu, menina da cidade, quando ia pra roça me perdia nas delícias culinárias feitas no fogão de lenha e nem questionava a origem dos alimentos. Já estava mais pálida do que já era, não tinha cor, diziam. Meu tio usou da sabedoria de nossos antepassados indígenas para me socorrer de uma intoxicação. Tomei tudo e ali, queimando em febre delirei e transpirei até eliminar todo aquele veneno.
Me desculpem. Eu adoraria lembrar aqui nesse espaço de músicas que fizeram a trilha de nossas vidas em momentos divertidos, românticos, leves. Mas nem só de momentos bons a vida é feita e nós brasileiros vivemos numa gangorra há quase 523 anos.
Tá. Vocês aí "devem estar pensando que sou loki, bicho" como Arnaldo Baptista cantava. Mas a Cilibrina aqui fica "louca da vida" quando vê o noticiário e quando constata o que já vinha sendo noticiado e confirmado há tempos. E foi impossível não me derramar em lágrimas neste domingo quando acompanhei pelo Fantástico a matéria de Sônia Bridi e Paulo Zero sobre o extermínio dos Yanomamis.
Alguns dias antes, ao acompanhar o programa Estúdio I da Andréia Sadi na Globo News já tinha tido uma prévia do que viria pela frente com os dados apresentados por André Trigueiro: primeiro vetaram a água potável; mandaram "passar a boiada"; depois distribuíram cloroquina; pra finalizar, a FUNAI proibiu a ida de médicos da Fiocruz para as aldeias. Tem como não ficar "loki da vida"?
Buscando no dicionário uma palavra para definir o extermínio de uma comunidade, de um grupo étnico, racial ou religioso encontrei o substantivo masculino "GENOCÍDIO". E quem permite, lidera ou apoia estes atos é conhecido como GENOCIDA. E o Brasil, há 523 anos pratica deliberadamente este ato perverso.
Vocês podem me questionar, o porquê de minha revolta. Sou descendente de índio, meu bisavô era um bugre como o chamavam, pois segundo os portugueses, índios não cristãos eram assim denominados . Meu bisavô devia ser rebelde como eu, defensor de sua cultura, sua origem.
Quando vi aquelas mães com filhos adoentados, morrendo, muitas sem forças para amamentar, sendo que até mesmo o leite materno está contaminado pelo mercúrio dos garimpos me doeu na alma. Poderia ter sido minha tataravó. Foi dela que veio todo conhecimento de ervas medicinais que minha família materna conhecia e ainda conhece e como contei ali no começo deste desabafo me salvou . Os índios usavam a natureza para salvar. O "caraíba" usa o conhecimento para matar.
Isso quando não fazem das índias, meninas que acabaram de entrar na idade reprodutiva, de objetos de suas asquerosas vontades sexuais. Trocam sexo com adolescentes por comida. Meninas de povos originários usadas como moedas de troca. Poderia ter sido minha tataravó e eu carregando em meu gene e em meu ventre traumas passados. Cristão agindo assim... ser bugre me parece mais humano.
Aí foi impossível não me lembrar de uma " Conexão Amazônica" que a banda de rock Legião Urbana fez em 1987. Do mesmo nome do álbum "Que país é esse?" a música abaixo expressa essa minha revolta, e tenho certeza de muitos. Há anos.
O poeta Renato Russo dizia ironicamente : Piada no exterior/ Mas o Brasil vai ficar rico/ Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão/ Que país é esse?
Mais mais uma vez peço desculpas pelo texto pesado. Espero, sinceramente que cantem essa música com consciência, não só para posar de patriotas roqueiros tirando fotos com os dedos indicadores e mínimos levantados.
E espero ainda que se faça justiça. Por todos esses 523 anos.
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