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Entrevista - Eliane de Castro : vida dedicada à produção cultural na capital do país

 

Bastidores- Do rock à música popular brasileira, a produtora cultural Eliane de Castro tem como diferencial apoio incondicional à bandas autorais da capital. 
Fotos: arquivo Eliane de Castro

"Flyers" - alguns dos trabalhos já realizados pela produtora


Foi na mesa de um bar de Taguatinga, no Distrito Federal que Eliane de Castro encontrou seu primeiro desafio como produtora no fim da década de 1990. Sem ainda trabalhar na área da cultura, acompanhando o então namorado músico, hoje ex-marido, viu a dificuldade da banda em divulgar seu trabalho. Em um tempo em que não existiam redes sociais, o flyer era a forma mais eficaz de se promover os artistas, mas para quem vivia de música, bancar um material colorido e de qualidade envolvia altos custos. Tocada pelo sonho dos amigos  se ofereceu para conseguir um número significativo de panfletos em seu local de trabalho, de forma gratuita. Voltou - para surpresa a banda- com cinco mil flyers nas mãos. Daí veio  o convite de trabalhar na produção e divulgação da banda e por sua competência muitos outras bandas a procuraram.

O que os rapazes não sabiam é que a verba para a produção do material tinha saído do bolso da jovem, que embarcou no sonho dos rapazes de levar música para todos os cantos da capital.  E tem sido assim desde então. Eliane de Castro, hoje é responsável pela carreira de muitas bandas autorais de Brasília, e busca para seu casting artistas que agreguem valores , e prioriza trabalhar  com instituições socioculturais. Este ano esteve na assistência de produção de eventos como  Festival em Movimento, que contou com a genialidade dos músicos Hermeto Pascoal e Gabriel Grossi, do Festival Bebendo Blues e Comendo Jazz no Pátio Brasil Shopping e de projetos como " I'll be there"; "Etta Aretha", no Clube do Choro de Brasília e atua como DJ no projeto itinerante Cult 22 on Tour, com o parceiro de trabalho e de vida Marcos Pinheiro. Para setembro já se prepara para estar com a equipe do Clube do Blues de Brasília na produção do "República Blues". 

Mulher de garra e de brilho nos olhos, já enfrentou nos bastidores da vida episódios de preconceito e de assédio, mas por amor à arte  enfrentou todos eles e levanta bandeiras na luta de promover a igualdade de trabalho para as trabalhadoras da cultura. Além de tudo isso, tem na arte um trabalho filantrópico: participa do "Eu Solidário", projeto que leva música e doações para comunidades carentes da capital.

Apaixonada pelo que faz, a produtora tem ainda um grande sonho: reabrir o bar "America Rock Club" onde -como proprietária- levou grandes nomes do rock internacional e nacional pra o público brasiliense e deu oportunidades para bandas autorais em início de carreira. Eliane contou sobre os bastidores da produção para o Falando em Sol e é a entrevistada de hoje.


F.S- Você é brasiliense. Quais suas memórias de infância e depois de adolescência do cenário musical de Brasília? Tem algumas recordações de bandas de rock que surgiram na capital? 

Tenho uma memória afetiva muito grande da minha infância. Lembro-me bem dos almoças de domingo que minha mãe fazia em casa com a nossa família. Foi quando aprendi a escutar Clara Nunes. Sou apaixonadíssima por Clara Nunes e Elis Regina, são minhas referências da infância. Quanto a bandas de Brasília eu cresci vendo Legião Urbana, Capital Inicial, vendo a trajetória dessa galera, mas referência local , não sendo da cidade posso citar uma referência nacional que me veio uma lembrança muito importante e que marca muito minha adolescência, a banda Titãs, minha amiga brincava lembrava de quando a gente fazia aquelas barraquinhas com festas juninas, rua de lazer- as ruas não eram nem asfaltadas ainda- a gente escutava muito Titãs. Este ano fui ao show deles aqui em Brasília, me emocionei muito. No terceiro set tive uma queda de pressão e não consegui assistir, fui até atendida pelo pessoal do Festival.

F.S -Quando te veio a decisão de trabalhar com música, mais precisamente como produtora cultural? 

Tinha um bar aqui em Brasília, em Taguatinga chamado Batik. Estávamos eu e meu ex-marido na mesa e eles tinham uma banda e faziam tributo à Led Zepellin, eu trabalhava pelo SLU e na época - em 1999- são 24 anos de carreira, vi que eles estavam com dificuldades de fazer a divulgação. Não existiam redes sociais, eles trabalhavam com flyers em preto e branco, o colorido era muito caro. Numa brincadeira na mesa do bar falei para os meninos, trabalho num lugar onde posso conseguir cinco mil flyers para vocês, e mandei rodar os flyers. E eles me chamaram para fazer a produção da banda,  " Celebration Band, tributo à Led Zeppelin". Foi engraçado que não consegui rodar esses flyers de graça, eu paguei por eles, e por meio disso veio o convite deles para ser produtora, nunca tinha passado pela minha cabeça. Comecei com eles e depois veio a Quinta Essência, com tributo à Janis Joplin e a Back Doors com tributo à The Doors, grandes referências que estão no cenário musical de Brasília até hoje. Foi brincando numa mesa de bar que eu conseguiria e na verdade tirei do meu bolso (risos). Mas depois contei a verdade. Quando conto essa história, todo mundo ri.


F.S-Você tem como característica em seu trabalho  buscar unir artistas e instituições socioculturais que priorizam qualidade e valores. O que você observa e busca nos artistas com os quais trabalha? Pra você a música é  também uma forma manifestação política da sociedade?

Sim, para mim a música é totalmente uma manifestação política da sociedade, da onde a gente tem voz, onde  agente pode mostrar. Inclusive depois que comecei a trabalhar como produtora musical, tive um bar, o "America Rock Club", e fazia esssa união cultural e social, tive vários projetos como o Rap Solidário, o Metal Solidário que fazia com o Felipe CDC. É sempre sobre agregar, sobre ajudar.  Busco nos artistas com os quais trabalho que façam um trabalho com qualidade e que venham com vontade própria, não só para jogar nas redes sociais e aparecer, tanto que cuido de todas as redes sociais com as quais trabalho e quando tem feedback de algum fã, faço questão que eles respondam, que tirem isso deles, sou a produtora que mostra o caminho das pedras. Gosto muito de trabalhar com o Marcelo Marcelino, ele tira a produção musical dele da alma, essa energia é muito bacana. Tento passar isso para as bandas e para os artistas com os quais trabalho, principalmente as bandas autorais, com as quais eu priorizo. Eles encontram muita dificuldade de encontrar espaço e já pensaram em desistir e eu falo "não, a gente precisa de vocês, sem vocês a gente não é nada". Eu tento dar um apoio motivacional para que eles entendam o que estão fazendo, entendam o que é música na vida das pessoas. Entendam que a música pode mudar a vida de uma pessoa. Sempre estou atenta a essas situações.



F.S -Como foi o período da pandemia para você?  Quais as dificuldades de se produzir cultura num país que durante quatro anos não teve políticas culturais eficazes?

A pandemia foi uma avalanche para todos nós da cultura. Tanto nós produtores, músicos, roadies, artistas. Ficou todo mundo perdido, sem saber o que fazer, quem não tinha emprego fixo, vive só da música, ficou atordoado. Mas eu tive uma grande sorte, sou muito espiritualista, tenho muita fé em Deus, no universo, na natureza. Voltei com minhas ações sociais, hoje ainda participo do grupo "Eu Solidário", a gente mesmo após a pandemia, continua ajudando as pessoas das comunidades carentes, ali da cidade estrutural. Algo bem bacana que trouxe da pandemia- porque teve aquela avalanche de lives- vi que as pessoas estavam cansadas e adoecendo em casa e participei a convite de Natal de Oliveira,  do programa "Musicalmente Incorreto", ondr participei da produção. A gente levou um pouco de entretenimento, lazer, podia dar muitas gargalhadas, a gente criticava músicos, levou um convidado especial que foi o Gabriel Thomaz da banda Autoramas e a gente levantava o assunto de alguma banda, ele comentava, as pessoas interagiram muito, foi muito bacana para a gente e para quem acompanhou, foi um pouco da nossa salvação esse entretenimento.



F.S Você foi proprietária da casa de shows  América Rock Club. Quais lembranças tem desta época?

Ah... o América foi meu xodó. Fui proprietária dele de 2010 até 2014. Tenho certeza que um dia, se o universo me permitir vou abrir ele de novo. Foi importante para mim e para muitos artistas que passaram por lá, que me cobram até hoje esse retorno, do America Rock Club. Abri com muitas atrações internacionais, trouxe Jay Ramones, Paul Di' Anno, atrações nacionais como Lobão, Marcelo Nova, e tive muitas oportunidades de conhecer bandas autorais daqui de Brasília, conheci muitos artistas, fiz muitas amizades com clientes, era minha casa e muita gente se sentia assim. É importante dizer que foi uma parceria que fiz por meio do Rodrigo do Bolshoi lá de Goiânia. Quando levava as bandas de Brasília para fazer a produção e tocar na casa dele ele falava, que meu perfil já não era mais de produzir bandas cover, não tenho nada contra, mas teria de voar mais e numa parceria com a Heineken e com o Rodrigo, consegui abrir o  grande "America Rock Club". Se um dia o universo permitir voltarei com ele de novo, para mim e para muitos que tem boas memórias de lá.


FS- Fora isso você já trabalhou em produções de Festivais,  de Projetos como I'll Be There; Etta Aretha; Cult 22 On Tour. Pra quem não sabe qual o trabalho da produtora , como são os bastidores ? Quais os passos de grandes produções como essas? E qual a sensação de ver o espetáculo acontecer?

Já trabalhei em vários festivais importantes aqui em Brasília. Um deles acontecerá em setembro aqui em Brasília, o República Blues, do Clube do Blues daqui,  esse projeto "I'll be There com a Célia Porto e o mestre Rênio Quintas; o Etta Aretha com a Georgia W. Alô e o Cult 22 on Tour , um projeto itinerante meu e do Marcos Pinheiro, estivemos esse fim de semana em Pirinópolis em Goiás em homenagem ao dia do rock. Pra quem não sabe o que uma produtora faz, eu falo para quem me contrato, eu faço tudo, não levo problemas mas meus contratantes, trago soluções. Na minha posição faço desde o trabalho de roadie até o trabalho de logística, produtora cultural, faço de tudo. Quando estou ali e tem alguém precisando de minha ajuda, nos bastidores faço tudo. A sensação de ver o espetáculo acontecer e ver que você entregou com maestria é muito encantador. Ás vezes faço festivais que duram dois, três dias- o festival em si- porque a gente trabalha muito em cima do festival, eu gosto muito do que faço. Tem muita gente que não tem a menor noção  do que acontece por trás dos bastidores para a gente entregar um trabalho com tanta excelência. Quando termina um trabalho eu fico muito feliz.

F.S- Brasília é conhecida como a Capital do Rock. Mas o cenário do Blues aí  cresce potencialmente.  O que você tem visto de interessante nesse segmento? Quais artistas você indicaria para quem quer conhecer o blues feito na capital do país?

Pra te falar a verdade o cenário do jazz e do blues tem crescido muito em Brasília. Há alguns dias fui assistir a participação da Thaise Mandalla, uma das artistas que indico para muitos produtores, a Brasília Blues Band também, e debatendo com o saxofonista que estava comigo, convivendo aqui e trabalhando há 25 anos Brasília está muito engessada, não vou mentir. Ainda existem muitas "bolhas" que devem ser perfuradas, muitas delimitações, divisões.  Embora muitos projetos estejam acontecendo isso poderia se expandir se as pessoas pensassem em agregar, mais no somar que no dividir.

F.S -Embora muitas mudanças e conquistas tenham acontecido o universo do rock tem predominância masculina. Como produtora, como mulher, você já enfrentou situações de preconceito? 

Eita ferro (risos). Eu sempre falo dessa situação. Pra falar se houve alguma mudança ou conquista, eu não acredito nisso não. Eu acredito que tem muito a ser mudado. Tem muito preconceito predominante, principalmente da parte masculina. E da feminina também, tem muita produtora dividindo o trabalho com homens e não dão espaço para parte feminina, isso sempre foi um tabu aqui em Brasília e me deixa muito triste. Nós sempre ganhamos menos, sempre fomos desvalorizadas, o reconhecimento da gente é muito pouco e sem contar a gente passa por uma situação que eu sempre comento e que fica muito escondida por aí, por trás dos bastidores, o assédio sexual que a gente sofre Posso dizer que recebo vários, uma vez por semana isso acontece. A gente se sente muito pra baixo quando isso acontece, quando a gente vê que a pessoa não está comprando seu trabalho, quer outra coisa de você, sempre levanto essa bandeira, do assédio sexual, do assédio moral. Os homens sempre acham que sabem mais, que são os melhores e em Brasília temos mulheres maravilhosas, produtoras, musicistas, em todo local que você possa falar de cultura as mulheres estão comandando muito. Mas é preciso acontecer muitas mudanças para as pessoas entenderem que possamos estar no mesmo nível, para exista um nivelamento. Não deveria ter diferenças, a gente que está aqui com a mão na massa sabe o que se passa nos bastidores da vida. Mas não generalizando. É importante frisar que existem muitos homens produtores que nos ajudam a sair dessa situação de vulnerabilidade e nos dão muitas oportunidades.

F.S- Nosso ex-ministro Gilberto Gil declarou que " é preciso colocar  a cultura na cesta básica brasileira". Você atua em comunidades  Distrito Federal, e já trabalhou com os eventos "Metal Solidário", "Rap Solidário". Como a música pode transformar a vida dos moradores da comunidade?

Sim, faço ações sociais há muito tempo, desde o América Rock Club com esses projetos que não existem mais. Quando começou a pandemia iniciei um pequeno projeto agregando com a Gabriela Pimenta um projeto que se chamava "Grãozinho". Só que recebia tantas doações que a Gabriela, também professora, não conseguia me acompanhar com as entregas. Então procurei o Phu da banda Macakongues 2099, um dos fundadores do "Eu Solidário". Somos uma turma de quinze pessoas para ajudar essas comunidades. Além de levar cultura para as comunidades carentes- a gente tem uma sede na cidade estrutural- dentro da música já faz ações solidárias. Em vários shows que a gente produz por conta própria já pede doações, um quilo de alimento. E dessa forma a gente já vai ajudando a colaborar, como Gil falou colocar cultura na cesta básica brasileira. No caso a gente faz o contrário, leva a comida por meio da cultura. A cultura ainda tem que chegar perto dessas pessoas. Aqui temos o "Ferrock", que leva música para as escolas mais carentes .

F.S- O que é música para você?

Música para mim... é... música para mim é felicidade, música para mim vem da alma, abre portas, é o sol, é ver  lua, música para mim é tudo que gera energia boa, acho que a música transforma as pessoas, música cura, música é amor, acho que estou no caminho certo, fazendo o que eu gosto e amo muito que é a música, é isso...


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