Mulher de verdade - Mais de 90% das mulheres no Brasil são trabalhadoras invisíveis e se tornaram tema de redação do ENEM
Foto: Amélia Valente
" Querido Diário...
Hoje acordei. Em todos os sentidos possíveis. Abri os olhos e me vi levantando da cama para mais um dia de cuidados com todos. Comigo. Nenhum. Todos têm necessidades. Eu. Não. Nasci pra cuidar. Cuidar das roupas, deixá-las limpas e cheirosas e passadas. Cuidar da casa, tudo tem de estar limpo e cheiroso para quando chegarem da rua espalharem seus pertences por todos os cômodos. Cuidar do uniforme e levar as crianças para as aulas e cuidar de checar material, lição de casa e se beberam água o suficiente. Cuidar da alimentação de todos, checar se estão comendo e preparar a refeição de acordo com o gosto pessoal de cada um. Meu gosto. Nem sei mais do que gosto. Vivo para cuidar. Não tenho férias, feriado ou folga. Vivo 24 horas em função dos que me cercam. Todos têm horários. O meu depende do deles. Sou totalmente dependente.
Salário. Não, não recebo nada. Nem dos que vivem aqui e trabalham, muito menos do governo. Dona de casa ou do lar é como escrevo nos formulários que ás vezes tenho de preencher . Não tenho férias, fundo de garantia, quiçá décimo terceiro salário. Se quero ou preciso de algo para meu uso tenho de pedir, e sempre compro algo para as crianças, elas precisam. Posso perfeitamente usar o que sobra para comprar algo bem baratinho para mim. Minha função é cuidar. Uma vez questionei. Fui chamada de ingrata. Se tem algo que me dói é acharem que sou interesseira. Cuido com amor.
Mas hoje acordei. Vi na tevê enquanto passava roupa nesse calor de quase 40 graus que o Exame Nacional de Ensino Médio, o ENEM ( e é com M que se escreve, né ?) teve como tema de redação "Desafios para enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil". Ouvi especialistas falando sobre o assunto e por um momento me senti parte de um grupo: o das mulheres invisíveis. Aí vi um jovem reclamando que o tema é muito difícil.
Difícil...
Em uma hora de conversa comigo ou com a mãe dele, ou com as milhares de mulheres invisíveis em nosso país, saberia o que é de fato difícil. Difícil é viver em função do outro. Difícil é como no livro daquela escritora que chamavam de "feminista" Lispector, vestir a roupa de viver e deixar os sonhos na gaveta. Na mesma gaveta deixar os diplomas e certificados de uma profissão que um dia se teve e se amava. Difícil é ter de pedir dinheiro por um trabalho que se faz que não é visto como trabalho, e sim obrigação. Difícil é estar num relacionamento abusivo - moral, sexual, psicológico ou financeiro- por não ter condições de se manter sozinha. Difícil é querer voltar ao mercado de trabalho e ouvir de volta : " e seus filhos, o que vai fazer com eles?", porque não se pode contar com uma rede de apoio, nem creches e escolas. Difícil é ouvir um " quem mandou ser mãe". Difícil é querer fazer um curso ou participar de algo e ouvir de volta : " vai mesmo, dá para quem você quiser". Difícil é após anos e anos cuidando de tudo e todos- e se anulando para a carreira do companheiro alavancar- não poder chegar em um banco e fazer um financiamento, afinal não tem renda própria pra isso. Difícil é tentar se reinserir no mercado de trabalho e ouvir várias negativas, afinal por mais cursos e qualificação que tenha sua idade já marca "enta" no ponteiro. Difícil é ouvir que por mais que você queira sair da função de cuidar o melhor que você pode fazer é ficar em casa e cuidar de seus filhos, dos pais, dos avós, do marido. Aceita que dói menos, é o que falam. Difícil é olhar por todos e não ser vista. Difícil é não ter políticas públicas olhando por nós. Quem cuida de quem cuida?
Aí penso...
Meu samba feito em 1942 por Ataulfo Alves e Mario Lago foi "cancelado". Hipocrisia pouca é bobagem. No discurso tudo é perfeito, mas a sociedade continua fechando os olhos para Amélias como eu. Para os homens, mulheres sem fala são mulheres de verdade...
Chega por hoje. Já são quase dez horas da noite e tenho de deixar as camas arrumadas para que todos descansem. Se eu falar pra minha família tudo o que penso, vão falar que sou louca. Capaz de me levarem ao médico psiquiatra. Vou é dormir. Só assim descanso.
Até amanhã, da exausta
Amélia".
E é para todos que não enxergam o trabalho invisível das mulheres no Brasil que dedico essa Quinta da Saudade. Ouçam "Ai que Saudades da Amélia", reflitam, e por favor : cancelem o comportamento herdado do patriarcado. Não o samba.
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