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Entrevista - Caru de Souza : uma carioca de Amor, Pele e Blues

 


Amor, Pele e Blues - a cantora e compositora Caru de Souza lança amanhã  em todas as plataformas o álbum feito com carinho para os fãs do blues nacional
Foto: Rebecca Coutinho

Em uma rua de Friburgo, cidade na região serrana Fluminense, uma jovem caminha cantarolando um blues.  Uma senhora muito apressada a ultrapassa, mas aquele canto que parecia trazer consigo todo um lamento vindo da  alma a toca e ela diminui a velocidade dos passos para poder ouvir aquela belíssima voz. 

A dona dela é a cantora e compositora Caru de Souza, que desde criança trazia o dom para a música em sua essência: ainda muito pequena chamava a atenção de um tio que a via hipnotizada diante de qualquer caixa de som,  dançando o que estivesse tocando. Aos treze anos, a fã do rock progressivo e de bandas como  Pink Floyd e Led Zeppelin - seu primeiro flerte com o blues- decidiu ser "cult" e procurou aulas de teoria musical tendo como piano como ponto de partida. Porém, era de praxe estudar as lições para levar tudo pronto na aula seguinte  e assim provar que tinha de fato estudado. O ato de estudar  a desmotivou, fazendo com que desistisse  do instrumento . 

Foi quando, encantada pela força vocal da mestra Janis Joplin e pelas canções de Big Mama Thornton presentes no disco da cantora texana, Caru descobriu que seu instrumento musical estava ali com ela o tempo todo: sua voz. As cordas vocais dariam vida à dádiva de  fazer "arrepiar as peles alheias" que o blues e seus lamentos ritmados têm. 

Amanhã, 14 de abril, a artista nascida no Rio de Janeiro lança em todas as plataformas seu primeiro álbum , "Amor Pele e Blues", pela Crawfish Records. É ela a entrevistada do Falando em Sol de hoje, relembrando sua trajetória e sobre o cenário do blues brasileiro.

Tatiana Valente

FS-  Se lembra do primeiro blues que ouviu?

O primeiro Blues que passa pela minha cabeça de ter ouvido, talvez não seja interpretado bem como uma música desse gênero, foi Planeta Blue do Milton Nascimento. Depois, há outro muito emblemático na minha vida e que me introduz nesse universo que é Mercedez Bens interpretado pela Janis Joplin no álbum Pearl.

FS- Aos treze anos você decidiu ser "cult" e estudar música. Seu primeiro instrumento foi o piano. Qual a importância do estudo de música para nascer a cantora Caru?

A Caru de Souza é uma construção híbrida entre o teatro e a música, artes que procurei nesta fase da adolescência - entorno dos 13 anos. O estudo da música se torna importante em muitos aspectos das nossas vidas e deveria ser melhor valorizado em nosso cotidiano. É um dos instrumentos para se aprender ritmo e harmonia, além de nos provocar a expressar nossas luzes e nossas sombras mais profundas com o instrumento escolhido, seja a voz, o violão, o piano….


Foto: Pedro Bessa


FS- Teve alguma apresentação tua que te marcou?

Tenho muitas apresentações marcantes, talvez todas, rs. Contudo, nos últimos tempos, acho que participar em 2022 do Circuito SESC de Jazz & Blues em Paraty com uma lua cheia singular, do palco principal do Festival de Jazz & Blues de Rio das Ostras com as Mulheres do Blues e de cantar com a norte-americana Deanna Bogart no mesmo festival, esses 3 momentos possuem um lugarzinho de destaque no meu coração.

FS- Quem são suas referências?

Uau! São muitas, principalmente por suas histórias de vida além do legado musical. Minha bagagem blueseira se inspira em Nina Simone e Bessie Smith como alicerces. Depois, posso citar a Koko Taylor, a Dinah Washington, a Clara Smith, a Mamie Smith, a EttaJames, a Beth Hart, Ruth Brown, a própria Deanna Bogart, a Shemekia Copeland, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Dawn Taylor Watson,entre tantas outras que conheço dia a dia.

F.S- Como é fazer blues numa cidade que é marcada por estilos como a bossa nova, o samba e o funk?

Não sei bem o que dizer, talvez a música Rio 40 Graus do Fausto Fawcett e da Fernanda Abreu defina bem essa cidade: “O Rio é uma cidade de cidades misturadas” e, apesar de termos a bossa, o samba e o funk como cartão de visitas da Cidade Maravilhosa, não podemos nos esquecer de que por aqui, entre as décadas de 1980 e 1990 nascia o Barão Vermelho e viviam Cazuza e Celso Blues Boy. Também é aqui, em terras cariocas, que habita a banda de blues mais longeva do país, os queridos amigos do Blues Etílicos e aindatemos os integrantes da Big Allainbik, da Baseado em Blues entre outros tantos produzindo, tocando e atuando no circuito de blues nacional - Jefferson Gonçalves, Big Gilson, Big Joe Manfra, Sérgio Rocha, Álamo Leal, etc. Sob esse cenário, me sinto abraçada, acolhida e parte integrante de uma nova geração do blues carioca que chegou não faz muitotempo e aprendeu com todos esses grandes músicos. Aqui, posso citar a Caravana Cigana do Blues, a Sonja, a Nanda Moura, a Back2Blues, o Murilo Brugger e mais uma coleção de grandes artistas que aquecem, interagem e incendeiam a cena carioca.É muito bonito ver essas gerações se encontrando e tocando juntas em casas de show, bares e festivais. Arrisco dizer que somos uma irmandade com todos os temperos que o blues adiciona às relações musicais.

Foto: Vinícius Giffoni


FS- Como é ser uma artista independente num cenário que não é tão popular no país?

Ser artista é tão difícil como qualquer outra profissão, os ônus e os bônus de ser artista independente se dilatam por uma cultura brasileira já secular que marginaliza qualquer arte independente do seu tamanho ou da sua projeção midiática. O que quero dizer é que tanto aqui no Brasil quanto nos EUA a música negra sempre sofreu censura, perseguição e marginalização e, se pensarmos que tanto Robert Johnson quanto João da Baiana foram presos pelo crime de vadiagem no início do século XX, não me surpreende em nada o tamanho dos obstáculos que temos que enfrentar até os dias de hoje em pleno século XXI. O preconceito e o respeito pela arte precisa partir das duas pontas, ou seja, tanto o público quanto o próprio artista precisa entender que esse ofício é um trabalho, demanda tempo e investimento financeiro como uma confecção ou um consultório médico e que não devemos negligenciar esses processos em troca de nada que não seja justo pelo trabalho empenhado ao divertimento e ao entretenimento alheio.

FS- Você encontra dificuldades em participar de festivais?

Sim, sempre. Os festivais viraram uma fórmula de trabalho e projeção para os músicos do blues e do jazz por serem os eventos importantes para esses estilos pouco procurados pelas casas de shows e bares. Contudo, entendo que não dá pra adicionar muitos artistas nacionais ainda sem muita projeção nesses eventos e o interesse maior do público é pelos nomes internacionais ainda que não muito conhecidos. Penso que esse é um trabalho de persistência da minha parte, como cantora independente em ascensão.

F S - Como nasceu "Amor, Pele e Blues"?

Esse álbum é a reunião de músicas autorais há muito compostas por mim e há não muito tempo transmutadas para o blues. Gestar esse trabalho foi uma grande descoberta dos meus conhecimentos musicais e da minha trajetória até aqui. Venho sonhando com ele faz tempo e exigiu uma maturidade musical e pessoal para que fosse concebido por ser o trabalho onde exponho minhas luzes e minhas sombras sem a menor pretensão de qualquer coisa e com a convicção de que era o que tinha que ser feito. Senti muito orgulho do resultado e tenho dito que o Amor, Pele & Blues está gostosinho como um bolinho de chuva com café numa tarde chuvosa. É um trabalho pra ser apreciado e aconchegado no coração dos apreciadores do blues brasileiro.

F.S- Quais músicos participaram da gravação?

Este trabalho, lançado pela Blue Crawfish Records, tem a produção musical do incrível Netto Rockfeller que também me agraciou com suas guitarras, o Guilherme Ambrózio é quem assina o baixo e o Rabicó a bateria compondo uma cozinha generosa e delicada. Também tive a sorte de ter a voz belíssima da Mayra Aveliz nos backing vocals, solos de slide guitar extraordinários do Lucas Espildora, o Hammond e o piano do Fernando TRZ e as harmônicas especialíssimas do Uirá Cabral. Não posso deixar de comentar da capa cuja aquarela da Ágatha La Piedra e o design do Alexandre Barcelos me impactaram muito e é elogiada massivamente por todos nas minhas redes sociais.

FS- Quando você canta, assim como os cantores de blues das plantações dos campos de algodão, deixa aflorar o que está ali guardado na sua alma?

Muitas das minhas músicas possuem a influência de um poeta persa chamado Jalaludin Rûmi que dizia que “A música é a linguagem da alma” , cantar, ao meu ver, é justamente conversar com a alma - com a minha alma, com a alma dos que já se foram e daqueles que estão me ouvindo. Desde a primeira vez que cantei em público pude perceber o efeito do canto sobre todos: é uma magia, uma dádiva divina da qual tenho muito respeito porque me coloca em conjunção com algo maior. Talvez, sob essa perspectiva, sempre procurei entender o que canto, conhecer a letra e o sentimento que está por trás do repertório que escolho, acolher a música e traduzi-la para as pessoas através do sentir. Pra mim, esse é o fascínio do cantar e o grande poder do cantor.

F.S - Como você definiria o blues?

É muito difícil definir o blues como uma coisa só. Se partirmos do princípio de que ele se origina a partir de todo o caldo cultural de africanos escravizados levados ao trabalho degradante e forçado em lavouras à revelia de suas próprias identidades num tempo em que não se tolerava nem mesmo a língua original desse povo, somado a isso, a violência nefasta gerada pela intolerância às matizes das peles, das religiões e do sexo e ainda, mais tarde, à exploração do capital artístico desses e de seus descendentes somente pelo enriquecimento de poucos empresários brancos, eu definiria o Blues como mais um movimento de resistência nascido no século XX. Mas pra não criar muita polêmica com os leitores desta entrevista, posso somente defini-lo como aquele AMOR que arrepia a PELE

Comentários

  1. Meooo Deoooos, que entrevista linda e bem conduzida. Seja bem vindo este álbum que nos causa tanta expectativa desta artista incrível e querida que é a Caru.

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    1. Ah Doctor! Obrigada pelo seu incentivo. É muito, muito importante, viu?

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