1996
Na escola onde iniciei o Colegial, nome que dávamos ao Ensino Médio, tive de me dedicar muito aos estudos. Porém em Língua Inglesa me destacava devido minha curiosidade pelo idioma. Meu professor admirado com os conhecimentos de uma aluna vinda de uma escola pública só conversava comigo em inglês e quem não entendia o que falávamos ficava a parte da fofoca. Ele era um fã dos Beatles e apaixonado pelas culturas que tinham o inglês como língua mãe. Um dia começou a discursar sobre as versões de algumas músicas em Português, explicando que para ele não tinha sentido nenhum, pelo viés cultural. O inglês para ele tinha de ser "puro". Mentalmente discordava de algumas observações, até que ele soltou:
" Um absurdo. George Harrison me escreve a belíssima "Here Comes The Sun", cheia de poesia e vem o tal do Lulu Santos e canta "lá vem o sol, tchurururu", causando um silêncio absurdo na sala e olhos voltados para mim.
" I totally disagree ", respondi com a cara fechada dando início a uma discussão na língua inglesa com o professor implicando com a versão e justificando com as outras músicas de John, Paul, Ringo e George. Eu defendia o direito de se usar uma vocalize com a cara do país na versão, afinal seria uma releitura da música por um artista nosso. Meus colegas só entendiam pelo meu tom de voz que estava irritada. Pedi perdão em pensamentos para os meninos de Liverpool -sabia do interesse deles por outras culturas - e soltei: "qual o sentido de Obladi, Oblada, já que a música seria feita por artistas de uma arte "pura"inglesa?".
O professor riu e disse: "Miss Brave, você é terrível". E um colega completou :" você foi falar do queridinho dela". Sempre fui da paz, mas ninguém mexia com o meu Luiz Maurício.
2014
Entro no táxi com meu filho nos braços. O motorista conhecedor de meu jeito falante se cala diante de minha expressão. Lágrimas represadas nos olhos e uma apatia absurda. Na minha cabeça as palavras da diretora do colégio :" não vai falar sem ajuda, não conseguirá segurar um lápis, nem escrever, dificilmente será alfabetizado com outras crianças".
As mãos trêmulas seguravam uma carta para o maior neuropediatra do país. O medo já tinha me tirado a vontade de dirigir e o caminho até minha casa pareceu uma eternidade. Assim que cheguei me sentei no sofá e desabei. Sozinha via os olhos assustados de meu Gabriel sem entender o porquê do meu choro. Já havia iniciado com um ele um tratamento na fonoaudióloga assim que notei que aos dois anos e meio não conseguia falar como outras crianças de sua idade. Só falava sílabas soltas. Era véspera de Natal e a consulta com o especialista só aconteceria após seis meses e, daquele dia em diante, começaria para mim uma luta contra o tempo. Para espairecer saí com minha cunhada para ao menos ver a rua, mas estava ali só de corpo. Sentada no banco de uma loja a aguardava escolher alguns sapatos, senti uma mão em meu ombro. Uma senhora sorriu e disse: "é...tem gente que é difícil de convencer né?".
Sorri de volta, mas estava num silêncio só meu, enquanto na minha cabeça parecia ter uma multidão falando, não conseguia nem iniciar uma conversa. Enquanto esperava a fila do caixa ela se colocou em minha frente e me pediu um abraço. Não podia imaginar o quanto eu precisava daquilo, naquele momento. A abracei de volta e ouvi suas palavras:
" A força que você precisa está aqui." Pousando as mãos no meu coração e na minha garganta. Se virou e saiu da loja.
Minha cunhada assustada me repreendeu, afinal era uma estranha e podia me roubar. Contei a ela a mensagem e saímos as duas pelas ruas de Lorena atrás da mulher que misteriosamente desapareceu.
Depois desse episódio disse para todos da minha família: por mais de doze anos ensinei crianças e adultos a falar uma língua estrangeira. Se não conseguir ensinar o meu filho a falar sua própria língua, rasgo os meus diplomas. Ironia do destino: uma mãe das Letras e comunicóloga com um silêncio ensurdecedor de palavras para vencer.
Dali em diante reforcei tudo o que o médico orientou. Chegava das terapias e repetia tudo o que me ensinavam com meu pequeno, fiz cartões com figuras variadas. Enquanto ele dormia, seguia a orientação da pediatra, espírita kardecista para dizer a ele que era sua mãe, que o desejava e amava muito e estava aqui nesse mundo por e para ele. Uma das dicas da fono foi a de cantar canções com repetições no refrão. Durante a gravidez de Gabriel ouvi muito George Harrison com suas canções de paz, amor e fé. Decidi então cantar "Lá vem o Sol", que repetia "sol, sol, sol, vem então". Saía no quintal e mostrava para ele o sol. Desenhava o astro rei segurando suas mãozinhas pequenas e cantava repetidamente. Nenhuma palavra saía, uma geleira verbal.
Até que um dia, enquanto ele estava na banheira comecei a cantar . Era como se o meu canto pudesse despertá-lo de um sono. Comecei : "Lá vem o ..." e me calei para desenroscar a mangueira do chuveiro quando fui surpreendida com uma voz doce dizendo "cól". Voltei pra o menino de olhos de cor de mar e ouvi novamente "cól,cól, cól" . O gelo havia derretido, assim como na versão de Lulu. O inverno tão comprido terminava e a barreira da comunicação começava a ser vencida.
E hoje, dia da minha quinta da saudade venho dedicar esta música para todas as mães de filhos com transtorno de linguagem ou no transtorno do espectro autista e peço:acreditem. O sol sempre vem.
Deixo para vocês "Lá Vem o Sol", versão de Lulu Santos para "Here Comes The Sun" de George Harrison, lançada no ano de 1989, no álbum Amor à Arte.
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