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Quinta da Saudade : "Uma carta para Mário..."

 


Paulicéia - minha visão da praça onde está a biblioteca Mário de Andrade, o local que serviu de inspiração para essas reflexões
Foto: Tatiana Valente


"Caro Mário...

Tive a ideia de te escrever essa carta numa sexta-feira, enquanto em um quarto de hotel, de frente para o prédio que tem tua imagem retratada, numa biblioteca que leva o nome de Mario de Andrade, observava pela janela sua Paulicéia Desvairada. Não imagina o desvario que a cidade se tornou, muitos anos após sua partida, precoce. Ali, na biblioteca que te homenageia acontecia um evento feito para mulheres na música. Mulheres do país inteiro para debater a presença delas na nossa música popular brasileira. O regional representado por artistas de todas as regiões do país. Te imaginar, abençoando aquele encontro não pude pensar noutra coisa, senão qual minha função ali, naquele grupo. Como curadora de um prêmio trago a missão de indicar trabalhadoras da música que se destacaram ao longo de um ano todo. 

Foi quando obervando aquele prédio pensei em buscar auxílio em seu trabalho deixado, que deveria ser um guia para todos os compositores brasileiros : "Ensaio sobre a música brasileira". Aliás, esse tem sido meu norte para escrever aqui no Falando em Sol, desde que comecei a receber músicas de todo país e busquei mostrar arte produzida pelo povo, artistas independentes e locais distantes dos holofotes da mídia e da imprensa que valoriza apenas os cliques. Hoje, não preciso fazer como você que viajava pelo país para captar as joias e coletar as flores que resistem da nossa cultura. A Internet me permite ouvir uma música produzida no Pará, ou no Sul do Brasil sem sair de casa. Confesso que isso me frusta, pois,  amaria sair por aí vendo isso presencialmente, o contato com o próximo me faz uma falta absurda. É horrível viver presa. Um dia ainda o farei. Por enquanto registro neste livro digital minhas referências da cultura popular como as mestres de congada, as compositoras populares e as cantoras de diferentes estados que descubro pela rede.

No seu estudo sobre música citava:  

"Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já esta feita na inconsciência do povo".

Foi no inconsciente regional e no mote das cantoras que me baseei para fazer minhas escolhas e recomendá-las às minhas colegas. Aquelas que beberam da fonte de suas origens, que as expressam em forma de música foram minhas prediletas. Creio, assim como você, que a música atual se preocupa demais em buscar lá fora inspirações para existir. Apesar dos anos, ainda seguimos assim. Não que não devamos, nós brasileiros somos frutos das muitas misturas culturais, mas seria incrível se  cada artista procurasse dentro de si mesmo, de sua hereditariedade, fontes de inspiração. Existiria uma renovação do repertório do que já é inconsciente, seria a real mostra do que é verdadeira arte nacional. 

Anteontem foi comemorado o dia do compositor, e sinto na geração atual- sem generalizar-  que muitos continuam repetindo aquilo que também já tinha observado em seu estudo.

"E a preguiça e o egoísmo impedem que o compositor vá estudar na fonte as manifestações populares. Quando muito ele se limitará a colher pelo bairro em que mora o que este lhe faz entrar pelo ouvido da janela".

Hoje em dia nem se chega na janela. Se escuta dentro de um estúdio e se copia. Uma imensa falta de criatividade, reforçada por uma tal de Inteligência Artificial. Veja, se é artificial, não tem sentimentos. E o que é a música senão um apanhado de emoções. Máquina não sente. Não é uma arte intríseca.

Sigo aqui, fazendo meu trabalho de formiga, tentando dar espaço para artistas do povo, mostrando eles para o mundo, e reverenciando seus ensinamentos. Mostro tua obra para que os jovens saibam que mais que um escritor exigido nos vestibulares, você é uma grande referência para aqueles que decidem fazer música brasileira. Muitos influenciadores musicais deviam ler sua obra antes de papagaiar por aí.

 Dê um abraço em todos os modernistas por mim, diga para Anita, Tarsila e Pagu que as mulheres artistas têm feito revoluções. Hoje, na minha quinta da saudade - prefiro esse termo no nosso bom e velho português que o thursday back in time -  canto sua "Viola Quebrada", ressaltando meus "erres", minhas origens, meu regionalismo. Peça perdão à Villa- Lobos pela minha viola, sou apenas uma mulher do povo fazendo arte.

Com todo amor e respeito por teus ensinamentos sobre o folclore, e tua grande obra

T.V"

P.S: decidi publicar esta carta hoje como forma de celebrar teu aniversário.




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